Um minuto de atenção:
dose diária de amor.
“Nas grandes calamidades, a caridade se emociona e
observam-se impulsos generosos no sentido de reparar os desastres. Mas, a par
desses desastres gerais, há milhares de desastres particulares que passam
despercebidos: os dos que jazem sobre um grabato sem se queixarem. Esses
infortúnios discretos e ocultos são os que a verdadeira generosidade sabe
descobrir, sem esperar que peçam assistência.”
(O evangelho segundo o espiritismo, cap. XIII, item 4)
A devotada e amável dona Maria Pinto, Servidora que atuou nas
lides assistenciais de Belo Horizonte, solicitou-me enviar ao mundo físico as
suas anotações instrutivas e libertadoras, o que fazemos com muito carinho.
“Naquela tarde, como de rotina, o Zé, vendedor de bilhetes
da sorte, fazia sua visita àquela empresa.
Homem
franzino, despenteado e de vestes rotas, dentes malcuidados, barba rala, quase
um mendigo, de tez morena e sorriso largo.
Logo a
porta, recebia a zomba do porteiro, à qual retribuía com um gracejo. Mais
adiante, era vez dos rapazes, tudo igual a todo dia: Olá Zé da cana! Olá Zé da
sorte! Olá Zé...Eram sempre chacotas de ambas as partes para rechear o momento
com agrados passageiros, e o Zé fazia o papel de bobo da corte para obter o
mínimo de aceitação e poder chegar à sua meta.
Sua
grande meta era Rosália, jovem senhora que sempre lhe comprava um bilhete e
tinha o gesto incomum de permitir-lhe “filar” um cafezinho no copo branco e
descartável. Nada havia de mais agradável ao Zé do que aquela experiência.
-
Obrigado, dona Rosália, amanhã eu volto, viu?
- Por
nada, sr. José, estarei esperando.
O que
era o Zé? Todos sabiam se tratar de um ambulante, mas quem era o Zé? Nunca
ninguém indagou, nem sequer desejou fazê-lo. Quem será esse homem?
Certa
tarde, ele chega e tem uma tremenda decepção:
- Cadê
dona Rosália?
Alguém,
sem nenhum interesse humano, respondeu-lhe que ela estará quinze dias afastada
por problemas de saúde. E o Zé saiu sorrindo e cantarolando, mas somente até o
portão, porque tão logo ganhou a rua,
ele começa a viver uma das experiências mais infelizes de toda a sua
existência.
Durante
quinze dias, o homem não mais apareceu, e ninguém o viu por lugar algum. Finda a quinzena, ele
surge mais maltrapilho, odor fétido e sem o sorriso trivial:
- Cadê
dona Rosália?
E, com
muita frieza, recebe a resposta:
- Dona
Rosália morreu.
- O
quê? Não pode ser verdade!
- Sim,
uma semana atrás ela pereceu.
- Para
de brincadeira! É brincadeira, não é?
- Não,
Zé, não é; tanto que ela pediu para lhe entregar isso, quando se encontrava no
leito do hospital.
- Para
mim?
- Sim,
é para você.
Finda a
conversa, o homem sai desconcertado e chocado, ao mesmo tempo em que a
curiosidade o tomava relativamente quanto ao envelope deixado por Rosália.
Ele
abre e depara-se com dezenas de bilhetes de loteria, e junto a isso um recado
de Rosália, que dizia:
- Meu
bom sr. José, a morte está próxima para mim, e não posso partir sem deixar de
me lembrar de todas as pessoas importantes na minha vida. O senhor é uma delas.
Devolvo-lhe todos os bilhetes que adquiri em sua mão e que nunca foram
conferidos, pois apenas os comprava por saber o quanto eram significativos para
sua dignidade. Desculpe-me por nunca ter lhe dado mais que isso, mas nuca
desista de resgatar sua honra e lute pela vida. Rosália.
O pior
estava por vir. O Zé saiu atormentado e com sentimentos indefinidos. Foi-lhe um
dia difícil.
José
Pereira Altamirando, casado, pai de seis filhos pequerruchos, dono de pequeno
pedaço de terra, saiu de seu estado nordestino quinze anos atrás e veio tentar
a vida na capital em emprego arranjado, mas logo foi despedido. Tentou novas
profissões humildes, o dinheiro acabou, não tinha onde morar, passou a viver na
rua sem condições de regressar ao lar. Fez amizade com pessoas em condições
semelhantes e a ilusão de conquistar algo o manteve, dia após dia, a tentar
alguma coisa. Todavia, enquanto tudo isso ocorria, a saudade dos filhos o
machucava. Não sabia escrever corretamente, os dentes caíam, a saúde
periclitava, o tempo passava, a dignidade se perdia...
Quem é esse
homem? Vamos saber?
Sem se
realizar física, afetiva, social, e espiritualmente, amoldou-se à vida social
dos indignos. Bebia para esquecer, fumava para aliviar, fazia-se de bobo da
corte para viver e se tornou o Zé das
loterias. Seu mundo íntimo em destroços.
A
rejeição social lhe impunha a condição de mendigo de rua, e recebia a amostra
da insensibilidade humana. Policiais impiedosos lhe faziam zombaria ou o
espancavam com seu grupo, acusando-os de roubo urbano.
Então
passou a mendigar, e a venda dos bilhetes era sua subsistência: um prato de
almoço, sua cachaça, um banho semanal...
Com o
tempo, os sonhos esvaíram-se e cederam lugar à realidade que ele teve de
aceitar. A saudade transformou-se em sentimento enregelado, e a revolta
converteu-se em atitudes de gracejo e trejeitos, a fim de que obtivesse a
mínima aceitação de seu meio ao troco de ironias e sorrisos de escárnio.
Esse é
o verdadeiro Zé que ninguém conhecia, mas que Rosália sentia. Mulher piedosa e
sensível, não enxergava nele o vendedor, todavia um ser humano que, certamente,
encontrava-se naquela condição não por escolha pessoal, e sabia que pessoas
assim têm profundas carências de respeito, afeto e atenção.
Ela
sabia que o Zé ia ali por causa dela, e tão somente por isso, mas ninguém se
dava conta.
Tanto é
verdade que no dia em que ela se ausentou, ele teve um colapso interno que nem
a si próprio sabia explicar. No entanto, era somente a falta da sua dose diária
de amor que não recebera.
Ninguém
sabia, entretanto, que, assim como Rosália colecionou os bilhetes, o Zé
colecionava os copos descartáveis de cada um dos dias em que esteve na
repartição; e, noite após noite, sentindo uma saudade incomensurável, nessa
altura do destrambelho emocional, nem sequer conseguindo identificar tratar-se
desse sentimento, tomava a coleção dos copinhos e começava a lembrar a imagem
de Rosália, dos filhos, da sua terra, e a dor ia apertando a ponto de, sem ter
noções mais exatas do que lhe ocorria no mundo interior, não suportar e apelar
para o seu “anestésico alcoólico” para passar a dor, e então saía em atitudes
teatrais e bizarras, tudo para fugir de si mesmo.
Esse
era o Zé, um homem que teve seu nome encurtado, sua dignidade afogada, sua
identidade integral consumida pela força das pressões e agressões da sociedade,
que apenas carimba-lhe de vendedor de bilhetes.”
*****
Os
infortúnios ocultos estão ao nosso lado todos os dias, em todos os lugares.
Cabe ao
verdadeiro espírita o dever de aprender a transpor limites com intuitos
promocionais no campo das suas relações humanas.
Tenhamos
inteligência e sensibilidade para que o nosso amor não esfrie diante de tanta
instrução e para que a nossa bondade não desfaleça diante de tanta inquietude.
Saibamos
ser um pouco de Rosália em todos os dias e em todos os lugares. E, seguindo a
linha de raciocínios inspirados de Maria Pinto, observamos, com amor, que dentro de nossas próprias agremiações
doutrinárias há uma multidão faminta chamada Zé, esperando de nós a atenção e o
acolhimento.
As
pessoas não estão querendo muito e nem precisam de muito; basta, quase sempre,
um minuto de atenção. E que esse minuto seja usado para uma das ações mais
terapêuticas do mundo moderno: levar o outro a sentir que ele pode ser útil e
fazer algo de bom, mesmo na situação em que se encontra.
Cap. 22 do livro Diferenças não são
Defeitos.
Wanderley Oliveira pelo espírito
de Ermance Dufaux.
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