quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Um minuto de atenção (texto)


Um minuto de atenção: dose diária de amor.
“Nas grandes calamidades, a caridade se emociona e observam-se impulsos generosos no sentido de reparar os desastres. Mas, a par desses desastres gerais, há milhares de desastres particulares que passam despercebidos: os dos que jazem sobre um grabato sem se queixarem. Esses infortúnios discretos e ocultos são os que a verdadeira generosidade sabe descobrir, sem esperar que peçam assistência.”
(O evangelho segundo o espiritismo, cap. XIII, item 4)
A devotada e amável dona Maria Pinto, Servidora que atuou nas lides assistenciais de Belo Horizonte, solicitou-me enviar ao mundo físico as suas anotações instrutivas e libertadoras, o que fazemos com muito carinho.
“Naquela tarde, como de rotina, o Zé, vendedor de bilhetes da sorte, fazia sua visita àquela empresa.
                Homem franzino, despenteado e de vestes rotas, dentes malcuidados, barba rala, quase um mendigo, de tez morena e sorriso largo.
                Logo a porta, recebia a zomba do porteiro, à qual retribuía com um gracejo. Mais adiante, era vez dos rapazes, tudo igual a todo dia: Olá Zé da cana! Olá Zé da sorte! Olá Zé...Eram sempre chacotas de ambas as partes para rechear o momento com agrados passageiros, e o Zé fazia o papel de bobo da corte para obter o mínimo de aceitação e poder chegar à sua meta.
                Sua grande meta era Rosália, jovem senhora que sempre lhe comprava um bilhete e tinha o gesto incomum de permitir-lhe “filar” um cafezinho no copo branco e descartável. Nada havia de mais agradável ao Zé do que aquela experiência.
                - Obrigado, dona Rosália, amanhã eu volto, viu?
                - Por nada,  sr. José, estarei esperando.
                O que era o Zé? Todos sabiam se tratar de um ambulante, mas quem era o Zé? Nunca ninguém indagou, nem sequer desejou fazê-lo. Quem será esse homem?
                Certa tarde, ele chega e tem uma tremenda decepção:
                - Cadê dona Rosália?
                Alguém, sem nenhum interesse humano, respondeu-lhe que ela estará quinze dias afastada por problemas de saúde. E o Zé saiu sorrindo e cantarolando, mas somente até o portão, porque tão logo  ganhou a rua, ele começa a viver uma das experiências mais infelizes de toda a sua existência.
                Durante quinze dias, o homem não mais apareceu, e ninguém  o viu por lugar algum. Finda a quinzena, ele surge mais maltrapilho, odor fétido e sem o sorriso trivial:
                - Cadê dona Rosália?
                E, com muita frieza, recebe a resposta:
                - Dona Rosália morreu.
                - O quê? Não pode ser verdade!
                - Sim, uma semana atrás ela pereceu.
                - Para de brincadeira! É brincadeira, não é?
                - Não, Zé, não é; tanto que ela pediu para lhe entregar isso, quando se encontrava no leito do hospital.
                - Para mim?
                - Sim, é para você.
                Finda a conversa, o homem sai desconcertado e chocado, ao mesmo tempo em que a curiosidade o tomava relativamente quanto ao envelope deixado por Rosália.
                Ele abre e depara-se com dezenas de bilhetes de loteria, e junto a isso um recado de Rosália, que dizia:
                - Meu bom sr. José, a morte está próxima para mim, e não posso partir sem deixar de me lembrar de todas as pessoas importantes na minha vida. O senhor é uma delas. Devolvo-lhe todos os bilhetes que adquiri em sua mão e que nunca foram conferidos, pois apenas os comprava por saber o quanto eram significativos para sua dignidade. Desculpe-me por nunca ter lhe dado mais que isso, mas nuca desista de resgatar sua honra e lute pela vida. Rosália.
                O pior estava por vir. O Zé saiu atormentado e com sentimentos indefinidos. Foi-lhe um dia difícil.
                José Pereira Altamirando, casado, pai de seis filhos pequerruchos, dono de pequeno pedaço de terra, saiu de seu estado nordestino quinze anos atrás e veio tentar a vida na capital em emprego arranjado, mas logo foi despedido. Tentou novas profissões humildes, o dinheiro acabou, não tinha onde morar, passou a viver na rua sem condições de regressar ao lar. Fez amizade com pessoas em condições semelhantes e a ilusão de conquistar algo o manteve, dia após dia, a tentar alguma coisa. Todavia, enquanto tudo isso ocorria, a saudade dos filhos o machucava. Não sabia escrever corretamente, os dentes caíam, a saúde periclitava, o tempo passava, a dignidade se perdia...
                Quem é esse homem? Vamos saber?
                Sem se realizar física, afetiva, social, e espiritualmente, amoldou-se à vida social dos indignos. Bebia para esquecer, fumava para aliviar, fazia-se de bobo da corte para viver e se  tornou o Zé das loterias. Seu mundo íntimo em destroços.
                A rejeição social lhe impunha a condição de mendigo de rua, e recebia a amostra da insensibilidade humana. Policiais impiedosos lhe faziam zombaria ou o espancavam com seu grupo, acusando-os de roubo urbano.
                Então passou a mendigar, e a venda dos bilhetes era sua subsistência: um prato de almoço, sua cachaça, um banho semanal...
                Com o tempo, os sonhos esvaíram-se e cederam lugar à realidade que ele teve de aceitar. A saudade transformou-se em sentimento enregelado, e a revolta converteu-se em atitudes de gracejo e trejeitos, a fim de que obtivesse a mínima aceitação de seu meio ao troco de ironias e sorrisos de escárnio.
                Esse é o verdadeiro Zé que ninguém conhecia, mas que Rosália sentia. Mulher piedosa e sensível, não enxergava nele o vendedor, todavia um ser humano que, certamente, encontrava-se naquela condição não por escolha pessoal, e sabia que pessoas assim têm profundas carências de respeito, afeto e atenção.
                Ela sabia que o Zé ia ali por causa dela, e tão somente por isso, mas ninguém se dava conta.
                Tanto é verdade que no dia em que ela se ausentou, ele teve um colapso interno que nem a si próprio sabia explicar. No entanto, era somente a falta da sua dose diária de amor que não recebera.
                Ninguém sabia, entretanto, que, assim como Rosália colecionou os bilhetes, o Zé colecionava os copos descartáveis de cada um dos dias em que esteve na repartição; e, noite após noite, sentindo uma saudade incomensurável, nessa altura do destrambelho emocional, nem sequer conseguindo identificar tratar-se desse sentimento, tomava a coleção dos copinhos e começava a lembrar a imagem de Rosália, dos filhos, da sua terra, e a dor ia apertando a ponto de, sem ter noções mais exatas do que lhe ocorria no mundo interior, não suportar e apelar para o seu “anestésico alcoólico” para passar a dor, e então saía em atitudes teatrais e bizarras, tudo para fugir de si mesmo.
                Esse era o Zé, um homem que teve seu nome encurtado, sua dignidade afogada, sua identidade integral consumida pela força das pressões e agressões da sociedade, que apenas carimba-lhe de vendedor de bilhetes.”
                                                       *****
                Os infortúnios ocultos estão ao nosso lado todos os dias, em todos os lugares.
                Cabe ao verdadeiro espírita o dever de aprender a transpor limites com intuitos promocionais no campo das suas relações humanas.
                Tenhamos inteligência e sensibilidade para que o nosso amor não esfrie diante de tanta instrução e para que a nossa bondade não desfaleça diante de tanta inquietude.
                Saibamos ser um pouco de Rosália em todos os dias e em todos os lugares. E, seguindo a linha de raciocínios inspirados de Maria Pinto, observamos, com amor, que  dentro de nossas próprias agremiações doutrinárias há uma multidão faminta chamada Zé, esperando de nós a atenção e o acolhimento.
                As pessoas não estão querendo muito e nem precisam de muito; basta, quase sempre, um minuto de atenção. E que esse minuto seja usado para uma das ações mais terapêuticas do mundo moderno: levar o outro a sentir que ele pode ser útil e fazer algo de bom, mesmo na situação em que se encontra.
                Cap. 22 do livro Diferenças não são Defeitos.
                Wanderley Oliveira pelo espírito de Ermance Dufaux.

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